terça-feira, 13 de maio de 2008

O poder discricionário na atividade Policial


Este é meu primeiro texto “encomendado” no blog. Meu padrinho nesse processo foi o amigo Aderivaldo, pessoa que admiro desde os idos tempos do colegial quando tomávamos cerveja na Vila Planalto, unidos a outros bambas. Éramos realmente felizes.

O tempo passou e sou colocado a prova com esse desafio. A primeira coisa que faço é pensar: “caramba eu nunca escreveria voluntariamente sobre isso”.

Procuro fazer um retrospecto de minha carreira como advogado, 08 (oito) anos apenas de profissão. Lembro-me que iniciei intrigado pela atuação de uma grande amiga, Dr.ª Anamaria Prates Barroso, Defensora Pública. Ela me levava processos criminais para estudar na faculdade e eu “os fazia” (defesas) pelas madrugadas a dentro, visto que estagiava pela manhã em um local e à tarde em outro.

Idos alguns anos, ficaram as lembranças. Deixei de atuar com Direito Criminal quase que completamente. Clichê, mas o Direito Criminal não me deixou. Tenho amor e ódio pela natureza humana, advindos desses tempos.

Passei a atuar com Direito Administrativo. Descobri que é um irmão siamês do Direito Penal. Sina, eu acho.

Desculpem os que eu decepcionar. Peço a paciência inerente àqueles que avaliam um debutante. Um aprendiz. Segue meu primeiro texto e saibam todos, não é um texto jurídico.

O poder discricionário na atividade Policial

Poderíamos iniciar esse texto falando sobre o primórdio da sociedade, rememorando a renúncia de parcela de soberania individual em prol de uma soberania coletiva, da paz social e da segurança (incolumidade física mesmo) como primeiro bem jurídico tutelado. Quantos pensadores a citar...

Poderíamos falar sobre a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que em dezembro deste ano completa 60 anos (1948-2008). Desta citaríamos o direito a liberdade, vida, segurança pessoal, de não sofrer tratamento degradante ou cruel, etc.

Não seria este, porém, um texto atual de fato. Seria mais um requentado.

Vamos falar então do que é Poder de Polícia primeiro e do que é Poder Discricionário depois, e aí apresentar opinião sobre o tema.

O conceito de Poder de Polícia não se encontra em nenhum Códex Penal. Encontra-se, no ordenamento jurídico brasileiro, no Código Tributário em seu artigo 78. In verbis:

Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interêsse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de intêresse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos. (Redação dada pelo Ato Complementar nº 31, de 28.12.1966)

Parágrafo único. Considera-se regular o exercício do poder de polícia quando desempenhado pelo órgão competente nos limites da lei aplicável, com observância do processo legal e, tratando-se de atividade que a lei tenha como discricionária, sem abuso ou desvio de poder.


Antes de avaliar o texto, observemos seu contexto. Essa Lei foi subscrita por Castello Branco, nosso primeiro presidente Militar, eleito pelo Congresso após o golpe de 1964.


Extraindo excertos, conceitua-se Poder de Polícia a atividade da administração pública que limita ou disciplina direitos, interesses ou liberdade, dentre outros.


Conforme já mencionado, por ser datado de 1966, o CTN foi escrito em uma época ditatorial. Em contrapartida, e abarrotada de melindres, idéias individuais e fundamentalismos, adveio a Constituição Federal de 1988.


Tal Constituição, conforme se vê ao analisarmos suas inúmeras e sucessivas Emendas, cuidou do engessamento do Estado, em especial do Poder Executivo.


Ela que vige e rege, apesar de suas imperfeições, não negando sua extraordinária evolução em pontos importantes, e estabeleceu que tratados internacionais que versem sobre Direitos Humanos são recepcionados no Brasil com força de Emendas Constitucionais.


É a mesma que não admite a pena de trabalhos forçados, que garante ao preso sua integridade moral e física, seu direito de permanecer calado, da prisão somente em flagrante delito ou por ordem judicial fundamentada, a presunção de inocência, a não utilização de provas obtidas por meios ilícitos, o devido processo legal, etc.


Pode não existir antinomia entre as normas, mesmo porque hierarquicamente diferentes. Pode-se acreditar na recepção do artigo 78 do CTN pela CF/88. Porém, não se pode dizer que a interpretação quanto aos limites de atuação policial continue a mesma em sistemas tão antagônicos.


A mens legis da CF/88 reprime o uso da força e assegura o devido processo legal, a prevalência da legalidade estrita. Já o espírito da lei reinante à época do CTN é o mesmo que, posteriormente, em 1969, por intermédio da Emenda Constitucional n.º 1, decretou o “recesso” do Congresso Nacional e conferiu ao Poder Executivo Federal autorização para “legislar sobre todas as matérias, conforme o disposto no § 1º do artigo 2º do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968”.


Primaz ressaltar que hoje estamos em um “Estado de Direito”, onde rege o império da Lei, submetendo-se a Ela o próprio Estado.


Nesse novo Estado, que sequer inicia sua adolescência, cabe à Polícia Civil, ser polícia judiciária, apuratória. Já a Polícia Militar destina-se ao policiamento ostensivo e a preservação da ordem pública, observadas atribuições definidas em Lei, conforme disposto no artigo 144, § 5º, da CF/88.


O que baliza então a atuação dessas polícias? A Lei. A Administração Pública, pelo princípio da legalidade estrita, somente pode agir por determinação ou atribuição legal, ao contrário do particular que pode fazer tudo que não seja vedado por Lei.


A Polícia, conforme se depreende anteriormente, é órgão da Administração Pública que atua como fiscal da observância da Lei pelos indivíduos, em determinada circunscrição de abrangência, declarada também por Lei.


Ocorre, porém, que o legislador não conseguirá prever em sua atividade legiferante, todas as situações possíveis de ocorrer, de forma a normatizá-las.


Então, é concedido ao agente público o discernimento necessário para agir, de acordo com a supremacia do interesse público, dentro dos limites e critérios legais. É a chamada “discricionariedade”, que se traduz na conveniência e oportunidade do agente público quando em ação.


A discricionariedade pressupõe a inexistência absoluta de qualquer desvio de finalidade, ou seja, pressupõe ações desprovidas de paixões individuais, em prol da coletividade.


E é aí que a porca torce o rabo. Émile Durkheim, sociólogo francês revolucionário, discutiu a neutralidade e a imparcialidade humanas quando da observação de fatos sociais. Apesar de seus esforços, é impossível hodiernamente acreditarmos na existência de uma visão imparcial por qualquer que seja, visto que os valores do indivíduo interferem e compõem seu modelo de avaliação.


A neutralidade que se persegue, no entanto, mais próxima possível de perfeição, é que deve ser balizadora do pensamento do agente público. Porém, se cabe a este conferir supremacia ao interesse público, sua neutralidade já nasce deformada e isso fatalmente levará o mesmo a conflitos internos entre o devenir e o agir.


E o que tudo isso tem a ver com a vida prática? Quando somos abordados por um policial que determina uma minuciosa revista em face de suspeita de prática de ato ilícito, estamos sendo objetos de prévio juízo de valor, ainda que remoto, sobre a possibilidade de sermos criminosos.


Tal ato torna-se um ato legítimo na medida em que as circunstâncias e os elementos objetivos determinem a atuação do agente público e tornam-se abuso de autoridade quando provenientes de paixões pessoais naturalmente parciais.


O limite de atuação do agente público deve ser sempre a Lei. E a interpretação da discricionariedade no uso do poder de polícia deve ser pautada pela intervenção mínima do Estado e o respeito absoluto da dignidade humana.


Há flagrante diferença entre o uso de força necessária e o uso de violência. A força assegura a violência degrada.


Não havendo objetivamente risco à atividade policial ou a terceiros, nada justifica uma abordagem policial em via pública com arma em punho. Ou uma blitz com escopetas apontadas para cidadãos comuns. É atividade degradante da moral alheia, covarde por natureza, marcada pelo uso desnecessário de força e o uso desnecessário de força denomina-se violência.


A autoridade vem do exemplo, diz um provérbio chinês. Para se fazer respeitar é preciso se dar ao respeito, dizem nossas mães.


O respeito dessas milícias se conquista pelo estreitamento entre polícia e sociedade. É não ter medo de pedir um auxílio ou uma informação a um policial, pois você sabe que ele é um ser humano revestido pelo poder do estado, poder este por você conferido, para sua própria proteção.


O que limita a discricionariedade no exercício do poder de polícia é a Lei sim. A conveniência e oportunidade devem ser avaliadas de forma sistêmica e observada a Constituição vigente e seus preceitos, sejam eles considerados rígidos ou suaves demais.


A atividade policial é uma atividade honrosa e valorosa. Homens e mulheres de valor engrossam fileiras de agentes públicos que fiscalizando o cumprimento da Lei, primam pela ordem e paz social. Isso é tudo.


Nada de Exterminadores e congêneres. Nada de igualar policiais a bandidos. Nada de desrespeitar homens e mulheres, pais e mães de famílias, policiais ou não, cidadãos comuns, subjugando-os pela utilização indevida de violência.


Não à marginalização das polícias, sim ao respeito à vida!


Como pode o exército, que é responsável pela defesa da pátria e garantia dos preceitos constitucionais (art. 142 da CF) ser igualado a uma força fiscalizatória urbana, que se conceitua como “militares dos Estados”, “forças auxiliares e reserva do exército” (art. 42 c/c § 6º do art 142 da CF)?


Como uma polícia focada na guerra pode atender de forma cortês um cidadão? Como um conceito forjado em épocas e regimes de exceção, reimpressas em 1934, 1946, 1967 e 1969, puderam ainda figurar na Constituição de 1988?


Quando entenderemos que servidores públicos são todos aqueles que, independente de estarem alocados como Juízes, Promotores, Delegados, Policiais, Deputados, Senadores, são pessoas comuns investidas na árdua, porém, sublime tarefa de servir? Servir é prestar serviço. Servidor público é aquele que presta serviço ao público, sem mesuras quaisquer.


É necessária a normatização da abordagem policial padrão. A normatização do uso de algemas. A normatização do procedimento de revista não violenta. A profissionalização de fato das polícias.


A meu ver, para que sejamos realmente melhores é preciso que o conceito de autoridade desapareça e que esse seja substituído pelo conceito de serviço.


Etimologicamente a palavra polícia vem do grego politeia, governo de uma cidade, de uma polis. Assim, Polícia é a representação do governante nas ruas e ninguém vota ou apóia um político violento... Pensemos nisso. Que políticos e polícia queremos?